segunda-feira, 7 de julho de 2014

O culto piaga das Águas

Particularmente, não tenho dúvidas que os antigos piagas eram intimamente ligados à sacralidade das águas e tinham como símbolos dessa relação, grafismos, rituais e figuras mitológicas presentes em sua cultura. Seria o cabeça de cuia uma divindade que sobreviveu em forma de lenda, como um resquício deturpado desses antigos cultos? E as mães d'água que até hoje são frequentes em relatos dos povos interioranos que moram próximos aos cursos d'água. A questão das figuras em si, deixaremos para outro momento dos estudos.

Sobre a espiritualidade e os cultos dos antigos povos que habitaram a zona piaga, têm-se apenas indícios e hipóteses, mas nada com total comprovação científica. No caso do paganismo piaga, a reconstrução desses cultos e desse passado religioso, feita a partir de uma perspectiva espiritualista, não se apega à comprovações científicas, pelo menos não de forma exclusiva.

No resgate de nossa herança espiritual o que surge como ferramenta de apoio é o conjunto de ciências não exatas, como a arqueologia, antropologia, sociologia, arte e tantas outras que nos fornecem suporte teórico e embasamento para que possamos nos apropriar de maneira mais segura desse legado religioso.

Após algumas análises de pinturas e gravuras rupestres de sítios arqueológicos encontrados em determinados pontos do território piaga concluí que, de alguma forma, tais representações simbólicas poderiam estar ligadas à algum tipo de culto às águas.

Para buscar compreender melhor o contexto dessas gravuras e fundamentar com mais propriedade a hipótese do Culto às Águas, pesquisei um pouco sobre as gravuras denominadas "itaquatiaras", que são comuns na região norte e nordeste do Brasil, geralmente encontradas próximas a cursos d'água, margens ou leitos de rios. Uma característica que chama a atenção é o fato de que algumas dessas gravuras, na época das cheias, ficam submersas ou bem próximas da água.

De acordo com a pesquisadora Gabriela Martin (2005) em língua tupi, a palavra "itaquatiara" significa "pedra pintada". Já para o historiador Vanderley de Brito, membro da Sociedade Paraibana de Arqueologia, essa palavra significa "pedra lavrada" ou "petróglifos". Paa Vanderley há muitos indicativos simbólicos que sugerem relações desses grafismos com a astronomia, a reprodução e a agricultura.O arqueólogo André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais, classifica essas pinturas como parte da "tradição Geométrica", como se as gravuras itaquatiaras fossem uma sub-tradição.

O que nos interessa aqui é a relação entre os grafismos itaquatiaras e o culto às águas, pois tais grafismos, quando analisados em seus contextos culturais e geográficos, geralmente nos dão pistas sobre os possíveis simbolismos das mesmas. A pesquisadora da UFPE, Gabriela Martin, diz o seguinte sobre os grafismos itaquatiaras:

"Nos cursos de muitos rios, arroios e torrentes do Brasil existem disseminados de norte a sul, desde o Amazonas ao Rio Grande do Sul, gravuras indígenas realizadas nas rochas das margens e nos leitos dos cursos d'água. São conhecidas pelo nome de itaquatiaras (pedras pintadas, em língua tupi) e que são, de todas as manifestações rupestres pré-históricas do Brasil, aquelas que mais se têm prestado a interpretações fantásticas. Estes petróglifos são de feitura, tamanho e técnica de gravura muito diferentes, dependendo da ampla geografia brasileira. [...] Nessa tradição, típica da região nordestina, predominam grafismos puros, porém deve se registrar a presença de antropomorfos, alguns muito elaborados, inclusive com atributos, como os encontrados na beira do São Francisco, em Petrolândia, PE. [...] Por estarem quase sempre nos cursos d'água e, muitas vezes, em contato com ela, resulta difícil relacioná-las com algum grupo humano, sobretudo pela impossibilidade, na maioria dos casos, de estabelecerem-se associações com restos de cultura material. Entretanto, existem algumas exceções quando as itaquatiaras identificam-se com culturas de caçadores, em abrigos próximos a rios ou em caldeirões. Estes depósitos naturais que se enchem d'água na estação das chuvas, têm, às vezes, as paredes cobertas de petroglifos e tem sido possível realizar-se escavações nas proximidades com bons resultados. É também muito difícil fixar cronologias para esta variedade de arte rupestre. (MARTIN, 2005) 

Gravuras na localidade Bebedouro (Cânion do Rio Poty)
Como bem foi escrito por Gabriela Martin, esse tipo de grafismo induz os mais criativos a uma série de interpretações aleatórias, por vezes fantásticas, sobre os possíveis simbolismos dos mesmos, mas no culto piaga as interpretações são feitas de acordo com os vestígios arqueológicos e a análise vibracional dos traçados.

Geralmente os grafismos itaquatiaras são encontrados nas proximidades de riachos, cachoeiras e qualquer lugar que tenha sido ou seja curso d'água. Por isso acredita-se que muitos desses locais seriam considerados sagrados para os antigos povos antigos da região. Particularmente desconheço estudos específicos sobre datações exatas para esses grafismos, mas provavelmente são mais recentes que as pinturas da Tradição Agreste e talvez tenham menos de dois mil anos.

Certamente muitos grafismos encontrados em margens de cursos d'águas pelo norte e nordeste tiveram relação com o culto das águas, pois até hoje, para os povos que vivem nessas regiões que passam por períodos de estiagem e que dependem da pesca, a água assume caráter sagrado, pela sua preciosidade e importância. A tradição católica apropriou-se disso, fazendo com que os cultos às águas se tornassem grandes procissões para que os santos trouxessem chuvas.

Um desses grafismos que me chamaram a atenção foi a imagem que o amigo João Pedro Santos, intitulou de "Vênus Piaga". A imagem lembra muito uma Vênus Esteatopígia das cavernas da Europa. A figura foi registrada pelo fotógrafo piauiense Juscel Reis, gravada em uma rocha às margens de curso d'água, na região do Canyon do Rio Poti, município de Buriti dos Montes. Note que a imagem é muito parecida com a Vênus de Willendorf e está gravada como se estivesse sob um altar.

No culto piaga, a Vênus Piaga é resgatada como uma divindade associada às águas, à fertilidade, abundância e é interpretada como uma divindade geradora de vida, pois sem água não há vida.

Outras imagens achadas nessa região do Canyon do Rio Poty também trazem formas onduladas, circulares e desenhos de peixes, que são reinterpretados em nosso culto moderno como símbolos da sacralidade da água para os povos que ali viveram. A aplicabilidade desses símbolos nos cultos "neopiagas" se dá através da confecção de talismãs mágicos, entalhe em instrumentos litúrgicos e peças do vestuário, além de uso em outras práticas mágicas.

Gravura encontrada no Canyon do Rio Poty (PI), representando
curso d'água, o próprio fluxo da vida.
Gravura encontrada no Canyon do Rio Poty (PI), representando peixe,
símbolo de fartura e alimento para os antigos piagas
Gravura encontrada no Canyon do Rio Poty (PI), representando possivelmente
uma figura feminina recebendo bênçãos da chuva. Note os cabelos longos
e os pingos acima da cabeça, outro indício de culto às águas.


Fontes:
- MARTIN, Gabriela. Pré- História do Nordeste do Brasil, 4 ª Edição, Ed. Universitária UFPE – Recife – 2005.
- Portal da Arte (http://www.portaldarte.com.br/pinturarupestre.htm), acessado em 07/07/2014.

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